Explicar por que é tarefa para diversos volumes e excede o escopo deste post, mas acredito que ao revisitarmos ainda que superficialmente os fatos de sua vida e seu pensamento, poderemos ao menos tocar a superfície de sua penetrante filosofia, e determinar algumas das causas que o tornaram a lenda que ele é hoje.
Bruce Lee foi um ator sino-estadunidense e um dos artistas marciais mais importantes do século XX, responsável pela popularização dos filmes de artes marciais. É inclusive considerado por muitos como o melhor ator de filmes de Kung Fu de todos os tempos. Bruce nasceu num hospital chinês em São Francisco em 1940 e os nomes dos seus pais eram Lee Hoi-Chuen e Grace Lee. Ele recebeu desde cedo educação e treinamento em Kung Fu em Hong Kong. Dentre seus principais tutores, podemos destacar Yip Man, um mestre conceituadíssimo que lhe ensinou o estilo Wing Chun. Posteriormente, ainda que ele não tenha concluído seu treinamento, essa seria a base para Lee desenvolver seu conceito marcial chamado Jeet Kune Do.
Devido às conexões de seu pai (que era cantor de ópera) com a indústria do entretenimento, Bruce Lee foi desde muito cedo um ator infantil em diversos filmes chineses na década de 50. Obstinado, arrogante e de temperamento explosivo, Lee procurou dosar seu aprendizado nas artes marciais com outras práticas e ao terminar a escola, foi para os EUA estudar. Diz a lenda que seu pai enviou-o à América para afastá-lo dos problemas constantes que tinha envolvendo com brigas com gangues na China.
Bruce graduou-se na Universidade de Washington, recebendo Bacharelado de Artes em Filosofia e depois foi para São Francisco, fixando-se por fim em Hollywood. Nesse período, Lee ganhou a vida como pode, inclusive dando aulas de dança, porém ele sempre teve a ideia fixa de que a melhor forma de divulgar seu talento e o então desconhecido Kung Fu que aprendera na China, era o cinema. Ao mesmo tempo, tornar-se ator satisfazia a sua personalidade megalomaníaca.
Conseguiu um papel coadjuvante como o Kato da série de televisão O Besouro Verde, que infelizmente durou pouco, ficando no ar de 1966 a 1967. O programa, que Bruce queria que fosse seu “trampolim” para o sucesso, não engrenou e ele passou a enfrentar dificuldades. Dava aulas particulares em domicílio para personalidades famosas do meio artístico, como Lee Marvin, Chuck Norris e Steve McQueen, sendo que o treinamento com ele chegava a custar até US$ 250,00 a hora, uma verdadeira fortuna para a época.
Os papéis na televisão minguaram bastante a durante um longo período Bruce ficou fora de cena, exceto por algumas pequenas participações em séries de TV sem expressão, como Marlowe (Detetive Marlowe em Ação) em 1969 e Longstreet, em 1971. A grande decepção de Bruce com os EUA veio logo a seguir, quando ele concebeu todo o conceito para uma nova série de TV chamada apenas Kung Fu, no entanto, na última hora, os produtores o passaram para trás, argumentando que a América não estava pronta para ver um seriado em que o ator principal fosse oriental. Em seu lugar, foi escolhido o popular David Carradine, que não entendia nada de artes marciais. Essa história foi narrada pela esposa de Bruce, Linda, porém hoje é veemente desmentida pelos produtores da série. A verdade provavelmente jamais virá à tona.
Seja como foi, aparentemente o golpe foi demais para Bruce que, cansado de enfrentar na América preconceito por questões étnicas, mudou-se para Hong Kong com a família, onde descobriu que a série “Besouro Verde” era sucesso absoluto, sendo inclusive conhecida por lá como o “Programa de Kato”. Por causa de sua popularidade, foi convidado a participar num projeto de três filmes do grande diretor chinês Raymond Chow, em que o primeiro se denominava “O Dragão Chinês” (The Big Boss – 1971). Seu próximo filme foi “Fúria do Dragão” (Fist of Fury – 1972) que quebrou os antigos recordes e o consagrou, além de artista marcial, como artista cinematográfico.
Em seu terceiro filme, “O Vôo do Dragão” (The Way of the Dragon), de 1972, Bruce supervisionou todos os aspectos do filme, tendo escrito, atuado, coreografado e até tocado percussão na trilha sonora do filme. Foi também sua estreia como diretor, ao lado de Chow, cuja presença garantia credibilidade à película. Esse filme conta, inclusive, como aquela que é celebrada até hoje como a melhor cena de luta já filmada, o combate entre Bruce Lee e Chuck Norris no Coliseu.
Nessa cena cuidadosamente estudada, Lee passa sutilmente os principais valores de sua filosofia, a qual resiste até hoje. De acordo com ele, um lutador deve se adaptar ao combate de acordo com a necessidade, libertando-se da rigidez dos estilos tradicionais. No filme, Lee começa o combate contra Norris perdendo, pois segue à risca os preceitos de sua arte marcial. O que ocorre é claro: o personagem de Norris é um lutador tradicional mais habilidoso que o de Lee! Ao perceber isso (na emblemática cena em que se levanta e sacode a poeira do corpo), Lee assume uma postura diferente de luta, adaptando-se às fraquezas de seu oponente, deixando-o atordoado e, obviamente, vencendo-o.
Já ao final das filmagens, Bruce preparava novas cenas de luta para seu novo filme “O Jogo da Morte” (Game of Death – 1973/78), mas em pleno início da produção, recebeu um telefonema dos Estados Unidos, para protagonizar seu primeiro filme americano, “Operação Dragão” (Enter the Dragon – 1973). Com esse novo projeto em mãos, ele estava preparado para alcançar seu sucesso total, podendo ter tudo o que sempre sonhou.
Bruce interrompeu O Jogo da Morte e rumou para os EUA, onde pôde trabalhar com um orçamento amplo e suporte de Hollywood. Foram filmagens tensas, mas enfim, o resultado foi positivo. “Operação Dragão” é até hoje considerado o melhor filme de artes marciais já feito. Contudo, Bruce levou seu corpo e mente aos limites durante a filmagem e, para suportar a tensão, recorreu a uma série de atitudes questionáveis, inclusive o uso de haxixe para conseguir se acalmar.
Em 10 de maio de 1973, enquanto editava “Operação Dragão”, ele sofreu um desmaio no estúdio, sendo levado às pressas para o hospital, onde nada foi detectado. Após uma bateria de testes, ele se recuperou, concluiu o filme, e retomou seu projeto anterior, “Jogo da Morte”. De volta ao antigo filme, Bruce estava trabalhando com a atriz chinesa Betty Ting Pei – única mulher com quem protagonizou uma cena de nudez, e quem suspeita-se ser sua amante na época. Visitou a casa dela com o propósito de discutir algumas cenas do filme, mas ao chegar lá, afirmou que estava com uma forte dor de cabeça. Ela lhe deu um analgésico e ele se deitou. Algumas horas depois, Betty entrou em pânico por não conseguir acordá-lo e ligou para Raymond Chow.
A morte de Bruce
Ele foi levado para o hospital às pressas, entretanto não havia nada a ser feito: Bruce Lee, a lenda das artes marciais, havia morrido. Com apenas 32 anos, deixou uma esposa, dois filhos e um legado inigualável no mundo, tanto das artes marciais como das artes cinematográficas. Em seu funeral, foi homenageado por milhares de pessoas, e o corpo levado para Seatle, onde ele e Linda Lee, sua esposa, haviam se conhecido. Até hoje, tal qual ocorre em casos nos quais a fama se sobrepõe ao homem, sua morte continua sendo discutida: muitos dizem que foi algum tipo de vingança por parte das gangues de Hong Kong, ou até mesmo uma maldição dos mestres chineses por ele ter ensinado as secretas artes marciais para não-asiáticos.
Tudo besteira, o tipo de lenda e mito que nasce quando as pessoas têm dificuldade em aceitar uma perda. A causa da morte de Bruce foi comprovada por uma autópsia e resultou de um edema cerebral, um inchaço no cérebro causado por uma reação alérgica ao remédio tomado na casa de Betty. Bruce havia levado seu corpo tão longe com seu treinamento, sem respeitar limites ou tempo de descanso, que chegou ao limite, cruzando a linha que separa saúde de dano. Seu corpo, como resultado, não aguentou.
Sua súbita morte tornou “Operação Dragão” um enorme sucesso mundial e colocou artes marciais na moda, criando uma verdadeira febre. Cinco anos depois, “Jogo da Morte” foi concluído usando o material que Bruce havia deixado filmado e um dublê, e tornou-se também um grande sucesso de bilheteria.
Bruce, com sua luta contra o preconceito, tornou-se o primeiro ator não americano a fazer sucesso nos EUA e abriu caminho para muitos sucessores, como Jackie Chan e Jet Li. Outros como Chuck Norris, Jean-Claude Van Dame e Steven Seagal se valeram da popularidade que seus filmes criaram para se projetarem e o gênero resiste até hoje, enfrentando picos de popularidade de tempos em tempos. Estranhamente, seu filho Brandon Lee, que procurava seguir a carreira do pai, teve também uma breve e próspera carreira, que foi interrompida em 31 de março de 1993. Durante as gravações de “O Corvo”, Brandon foi morto no set de filmagem por uma arma de festim indevidamente checada.
Jeet Kune Do
A carreira de Bruce no cinema foi curta, porém brilhante, contudo, essa não foi sua maior contribuição para o mundo das artes marciais. Durante sua Faculdade de Filosofia em Washington, Bruce teve contato com os textos do filósofo indiano Jiddu Krishnamurti e aquilo mudou sua vida.
Krishnamurti defendia que cada ser humano é uma luz por si só, e que é errado procurar suas verdades em outros lugares que não sejam dentro de você mesmo, por mais que esses lugares possam ser tidos como sagrados e especiais. “Você precisa ser sua própria luz em um mundo que cai nas trevas”, dizia esse grande mestre.
Fascinado por essa ideia, Bruce resolveu aplicá-la ao mundo das artes marciais e assim surgiu o Jeet Kune Do, expressão cantonesa que significa “Caminho do Punho Interceptador”. Sendo um aficionado pesquisador, Lee dedicou sua vida à análise das teorias e práticas de sistemas de luta. Percebeu a ineficiência de diversos movimentos para combates reais quando essas técnicas clássicas tinham muitos floreios, o que ele chamava de “desespero organizado”. Ele considerava que as técnicas clássicas de luta não estavam preparadas para situações reais de combate, preferindo abordagens mais diretas. Além disso, levou em consideração que as pessoas têm aptidões diferentes, corpos diferentes e que talvez não seja possível fazê-las se adequarem a um único sistema de luta, o que não quer dizer que elas não poderiam se adequar a outros.
Em uma polêmica declaração, ele disse: “Se sua vida está ameaçada, você não para e pensa: Deixe-me ver se minha mão está na posição correta, ao lado do meu quadril, ou se meu estilo é O ESTILO. Então, por que a dualidade?”. Bruce acreditava que a velocidade era elemento fundamental do combate, e que as técnicas mais simples eram mais rápidas, tanto em velocidade de reação, quanto de aplicação.
Através de experiências em combates reais, percebeu certa dificuldade de vencer através dos métodos clássicos de seu estilo de Kung Fu, o Wing Chun, considerado um dos mais diretos. Por essa razão, quebrou a abordagem clássica e desenvolveu técnicas as mais diversas em vários sistemas de artes marciais, retirando delas o que julgava eficiente e desprezando tudo aquilo que era teatral ou lúdico. A este processo, que na verdade é um conceito, ele chamou de Jeet Kune Do. Cada pessoa poderia, assim, se desenvolver de acordo com suas particularidades e peculiaridades, sendo a evolução um processo individual.
Entre os principais estilos pesquisados e sintetizados por Lee estão o Tai Chi Chuan, Boxe, Judo, Jiu Jitsu, Savate, Aikido, Kali, Muay Thai, além do já citado Wing chun, que ele havia estudado na China.
Filosofia
A abordagem filosófica do Jeet Kune Do é o aspecto mais importante do sistema, já que ele não se limita a conjuntos de movimentos. Para Lee, o Jeet Kune Do se desenvolve diferentemente em cada tipo de lutador, porque as pessoas são igualmente diferentes, e não possuem as mesmas características físicas e psicológicas. A “liberdade de expressão” era para ele fundamental dentro de uma luta, e acreditava que um sistema marcial restrito, ou um conjunto de movimentos limitava a habilidade de resposta do lutador, que deve ser completa. O lutador eficaz deveria ser capaz de responder a qualquer tipo de situação. Essa era uma de suas principais divergências quanto aos métodos clássicos, que exploram situações de luta a partir de adversários estáticos em sequencias pré-estabelecidas. Para ele o combate era algo vivo, e muito diferente de qualquer abordagem estática.
Entre as principais contribuições técnicas de suas pesquisas, estão as teorias sobre a eficiência dos golpes diretos e simples, como os socos do boxe, chutes abaixo da linha da cintura, combate no solo, e principalmente, interceptações. Do ponto de vista teórico, observava sempre a importância do controle da “distância”, do “timing” e da “cadência”, quebras de ritmo e dos fatores psicológicos do combate. Sobre o ponto de vista físico, seus métodos de treinamento, alimentação e coordenação para desenvolvimento de maior potência dos golpes, através do domínio da tensão relaxamento das fibras musculares no momento dos golpes, além dos processos mecânicos envolvidos em cada um.
O Tao do Jeet Kune Do
O Tao do Jeet Kune Do é o livro que expressa o ponto de vista e a filosofia de Bruce Lee e só foi lançado muitos anos após sua morte. O livro é na verdade uma cuidadosa compilação feita por várias pessoas, baseada nas anotações deixadas por Lee, em sua maioria quando foi hospitalizado por conta de um ferimento na coluna. O projeto para esse livro começou em 1970 quando Bruce estava impedido de praticar artes marciais devido a um problema nas costas, causado por excesso de treinamento. Sua recuperação levaria 6 meses, período no qual Lee deveria passar deitado de bruços. Foi uma época muito difícil para Bruce, que era uma pessoa hiperativa.
Durante esse período, Bruce decidiu reunir todo seu aprendizado e técnica de artes marciais e aproveitar para estudar a mecânica dos movimentos. A junção dessas anotações seria chamada de “núcleo de anotações”, mas muitas dessas notas, dizia Bruce, eram “inspirações espontâneas” por serem incompletas e desordenadas e não faziam sentido isoladamente.
Bruce pretendia terminar seu livro em 71, entretanto a carreira nos cinemas e seu trabalho o impediram. Ele também passou a se sentir inseguro quanto a publicação da obra, temendo que seu trabalho pudesse serutilizado para fins negativos. A intenção de Lee no livro era a de demonstrar sua filosofia e a forma com que enxergava as artes marciais e não desenvolver um guia ou manual do tipo “como aprender artes marciais em X passos”.
Em 1975, após seu falecimento, sua viúva decidiu disponibilizar as informações redigidas por seu marido em vida. A perspectiva que havia levado Bruce a vacilar quanto a publicação havia desaparecido e o livro seria uma espécie de homenagem a ele. As notas foram organizadas por vários editores, sendo que o principal deles, Gilbert L. Johnson, foi ajudado por Linda Lee, Dan Inosanto e outros alunos de Bruce Lee para entender melhor a conceituação por trás do Jeet Kune Do (ao menos o suficiente para a coerência da edição).
Bruce deixou uma mensagem muito clara sobre como via o comportamento do verdadeiro guerreiro marcial. E esse acabou sendo o lema do Jeet Kune Do, adotado muitos anos após a morte dele:
“Aproxima-te de Jeet Kune Do
Com a ideia de dominar a vontade.
Esquece a vitória ou a derrota;
Esquece o orgulho e a dor.
Deixa teu adversário
Arranhar a tua pele
E esmaga a carne dele;
Deixa-o esmagar tua carne
E fratura-lhe os ossos;
Deixa-o fraturar teus ossos
E toma a vida dele!
Não te preocupes
Em escapar ileso –
deixa tua vida diante dele."
P
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